Felipe Fonseca, janeiro 2009
É impossível falar sobre a MetaReciclagem sem contextualizar sua origem dentro do Projeto Metá:Fora, uma rede de pessoas em todo o Brasil articulada a partir de uma lista de discussão e de um website colaborativo. A princípio, a criação do Metá:Fora foi quase ocasional, sem pretensão maior do que juntar pessoas para falar de coisas sobre as quais até então pouca gente conversava em português. Em 2002, bem antes de aparecer no Brasil o hype da tal da web 2.0, wikipedia, tags e afins, já havia pessoas mobilizadas a partir de algumas referências em comum: o manifesto cluetrain, listas de discussão sobre tecnologia e sociedade, blogs diletantes e o movimento do software livre:
Estávamos conversando sobre internet sem fio, dispositivos conectados, XML, integração de equipamentos, conversações. (...) Decidimos criar outra comunidade online para tentar consolidar as novas idéias que um monte de gente estava gerando. Interessava a conversa sobre um cotidiano hiperconectado, sobre os limites cada vez mais tênues entre "online" e "offline", ente "digital" e "analógico", e o conhecimento livre como metodologia de colaboração. Não interessavam mais reclamações, mais críticas que não propusessem alternativas, mais choramingos de incompreendidos. Criei a lista de discussão no yahoo groups e convidei 12 pessoas. Quase todas entraram. Eu tratei de incentivá-las a conversar, enquanto o Hernani divulgava nos seus canais a nova lista. (http://efeefe.no-ip.org/livro/metáfora-10)
Wiki
Em menos de um mês, a lista de discussão já contava com mais de cinqüenta pessoas, de diversas áreas de atuação e formação. Dezenas de mensagens eram enviadas todo dia. Como muitas dessas mensagens tinham links pra sites e artigos, decidimos criar um sistema online de gestão de bookmarks. Usamos por algum tempo um site fechado, depois Paulo Colacino sugeriu que usássemos um script livre em PHP que montava uma estrutura de diretório de links. Mas acabamos optando por um wiki. Na época, havia poucos wikis em português (o mais conhecido era um chamado cudebebado, que era freqüentado por alguns integrantes da lista). Instalei o wiki em um diretório do meu site na época, e começamos a organizar os bookmarks por lá. Logo já havia mais de uma centena de links interessantes, além dos muitos e-mails trocados todo dia.
Hernani Dimantas escreveu à época:
Metá:Fora é uma inteligência coletiva. É ainda algo embrionário, um momento de ebulição ideológica, mas direcionado a ferramentar o cotidiano essencialmente online. E que nos obriga a unificar a comunicação com o desenvolvimento da tecnologia. (http://mutirao.metareciclagem.org/livro/Chocadeira-colaborativa)
Além de referenciar sites interessantes, grande parte das mensagens da lista eram debates profundos e abrangentes sobre temas diversos. As conversas adotavam uma perspectiva política, social, educativa ou econômica, além do mero aspecto tecnológico. Algumas dessas conversas chegavam ao ponto de virar planos de ação, como foi o caso de projetos idealizados por Daniel Pádua, como o Blogchalking e o Prefeituras Inteligentes, ou por Felipe Albertão, como o MetaOng. A sensação era que estávamos desbravando um novo mundo, vivenciando um tipo de convívio que ia além da falsa dicotomia entre "online" e "offline". De repente, não tínhamos mais limites de "áreas de conhecimento": qualquer pessoa poderia opinar nas idéias das outras, inclusive (talvez principalmente) se não tivesse nenhuma experiência no assunto. Além disso, havia a busca de formação de senso comum, de compartilhar o cotidiano, de questionar as próprias idéias a partir do confronto com o espelho do grupo.
Em determinado ponto começamos a usar o wiki para rascunhar projetos. A princípio, eram só idéias jogadas e informais, mas logo - com uma boa colaboração de pessoas como TupiNamba e Maratimba - chegamos a um modelo mínimo de projeto: descrição, equipe, links e referências. Passamos a pensar em forma de projetos, e algumas dezenas deles foram elaboradas.
A partir do momento em que o projeto abraçou a atuação baseada na articulação em rede, a inventividade presente no processo aberto de conversações começou a transcender o tecnocentrismo e pensar em como efetivamente interferir nos diferentes cenários sociais, sempre tomando por base o ideário do conhecimento livre.
O Metá:Fora passou de uma lista de debates para um grupo de intervenção, utilizando conceitos de colaboração para desenvolver uma infra-estrutura ou incubadora de projetos colaborativos, ou mais especificamente, uma chocadeira de código aberto. Conceitualmente está baseado no conhecimento livre, que significa liberdade para modificar, editar, adicionar ou subtrair, visando sempre aprimorar o conteúdo final. Um movimento iniciado pelos programadores e que pode ser replicado em outras áreas do conhecimento. As conversações propiciadas pelas listas de debates, fóruns e e-mails promovem a cultura do compartilhamento e beneficiam a mentalidade do conhecimento aberto e livre.
(...) O Metá:Fora corporifica os conceitos da apropriação das tecnologias e, na prática, as utiliza como forma tática de diminuição das distâncias entre seres humanos. Dessa forma, a transformação social pela apropriação tecnológica passa pelo questionamento daquilo que se chama Inclusão Digital, passa pelo ativismo midiático, bem como pela mistura cultural impulsionada e mediada pela cibercultura.
(...) Num determinado momento percebemos, então, que o Metá:Fora era uma forma de troca de conhecimento. Percebemos que as pessoas conversavam com outras pessoas, imbuídas do mesmo interesse pela interatividade. Este diálogo caótico e emergente nos possibilitou experimentar a transversalidade do aprendizado. Percebemos que na rede as pessoas aprendem, de fato, através da utilização das ferramentas colaborativas pelas próprias pessoas. (http://mutirao.metareciclagem.org/livro/Uma-experi%C3%AAncia-open-source)
Numa movimentação em grande medida oposta ao mundinho conectado da época (a blogosfera e empreendedorismo tecnológico em geral), o Metá:Fora incorporou elementos típicos das culturas populares brasileiras, como a gambiarra e os mutirões.
Esse conhecimento está impregnado nos mutirões. No efeito puxadinho colaborativo. É só “chegar” para ajudar o ser humano ser mais feliz. Uma mobilização que vai além da boa ação. É cotidiana e colaborativa.
(http://mutirao.metareciclagem.org/livro/Puxadinho-colaborativo)
Tríade da Informação Livre
Em determinado momento, passamos a desenhar uma estrutura conceitual para pensar a transformação social auxiliada pelas tecnologias. Daniel Pádua sugeriu um projeto chamado UTIL - União pela Tríade da Informação Livre, que tomava como base três esferas - infra-estrutura física, infra-estrutura lógica e interação. Miguel Caetano situa a inspiração para essa estrutura em Yochai Benkler e Lary Lessig:
Este modelo baseia-se em parte no conceito dos três níveis dos sistemas de comunicação introduzido pelo jurista Yochai Benkler e retomada por Lawrence Lessig, compostos por um nível físico, situado em baixo, um nível intermédio lógico ou relativo ao código e um nível superior, relativo ao conteúdo. A diferença substancial situa-se nesta última camada: enquanto Benkler e Lessig utilizam o termo conteúdo, os elementos do Metáfora preferem recorrer ao conceito de interacção de modo a fomentar a autonomia das comunidades. (http://mutirao.metareciclagem.org/fonte/Jeitinho-Brasileiro-e-MetaReciclagem)
A partir de então, os projetos passaram a ser criados tendo em vista a atuação nesses três estratos. Em pouco mais de um ano de atuação, foram rascunhadas duas dúzias de projetos. Nem todos foram efetivamente desenvolvidos, mas algumas das idéias ainda podem ser retomadas até hoje.
Xemelê
Uma das principais características do Projeto Metá:Fora era a ênfase em debates dos quais participavam pessoas das mais diferentes áreas do conhecimento, mas aos quais se mantinha uma atenção especial para que não incorressem em jargão específico de nenhuma área. Na época, chamávamos isso de Xemelê, uma brincadeira com a idéia de XML - protocolos que permitem que sistemas diferentes compartilhem informação ao usar formatos em comum. A primeira ocorrência do neologismo foi quando Dalton Martins enviou uma de suas primeiras mensagens à lista, que usavam um linguajar bastante técnico, e eu respondi dizendo "xemeleia isso que eu não entendi nada". (http://mutirao.metareciclagem.org/fonte/Xemel%C3%AA-entendendo-plataforma-agregadora). Com o tempo, o termo foi usado em outros projetos, e hoje batiza uma série de iniciativas levadas adiante por José Murilo dentro do Ministério da Cultura. (http://www.softwarepublico.gov.br/spb/ver-comunidade?community_id=4215419).
Esporos (e ConecTAZes)
Uma idéia que também nasceu no projeto Metá:Fora e influenciou bastante a MetaReciclagem foi o crescimento a partir de esporos: ao invés de inchar uma estrutura centralizada, chegamos ao consenso de que cada projeto deveria ter autonomia para tomar suas próprias decisões, desde que seguisse princípios definidos pela rede e a mantivesse informada sobre os desenvolvimentos. A idéia era chegar a um modelo de descentralização integrada, que possibilitasse um alto nível de agilidade e independência, mas não perdesse o aspecto de ação em rede que nos era tão caro.
Projetos independentes e colaborativos como o MetaReciclagem só podem se desenvolver se pensarmos de forma pirata. Células orientadas a projetos. Autonomia de gestão. Muita informação fluindo entre as partes e, principalmente, a convicção de que cada célula representa o todo. E assim termos a certeza da construção de um projeto comum e rizomático. Cada membro do grupo necessita contribuir como base para os outros.
(http://mutirao.metareciclagem.org/livro/Opera%C3%A7%C3%A3o-Pirata)
Quando a MetaReciclagem tomou corpo, a essas unidades elementares que anseiam por tornar-se referências locais somaram-se também as ConecTAZes (termo cunhado por Daniel Pádua, em referência às Zonas Autônomas Temporárias como definidas por Hakim Bey): intervenções coletivas que não necessariamente tinham por meta prolongar-se no tempo, podendo acontecer durante eventos ou ocupar estruturas já existentes e depois desaparecer.
Idealmente, os Esporos e ConecTAZes mantêm a dinâmica das conversações a partir da infralógica, uma série de ambientes online: wikis, uma lista de discussão, blogs e outros ambientes colaborativos.
Microcrédito, caordem, TAZ, mídia tática, inclusão digital
Com a velocidade das conversações no Projeto Metá:Fora, fomos absorvendo, ainda que de maneira dialógica e crítica, algumas idéias externas que circulavam pela rede. Uma delas veio das experiências de microcrédito relatadas por Mohammed Yunus no livro O Banqueiro dos Pobres. Outra foi a idéia de caordem, da emergência de padrões em ambientes complexos, com a qual eu pessoalmente tomei contato em uma palestra durante o segundo Fórum Social Mundial (e cuja origem, anos mais tarde, eu descobri com alguma surpresa por Miguel Caetano que vinha do mundo corporativo). Também usamos bastante a idéia já mencionada acima de Zonas Autônomas Temporárias, de Hakim Bey, e o ferramental conceitual dos grupos europeus de mídia tática. E, talvez a partir das conversas com Marcelo Estraviz, começamos a incorporar a preocupação com a chamada inclusão digital, mesmo que de uma forma diferenciada, mais preocupada com apropriação e articulação em rede do que com o mero acesso, como comentou Hernani Dimantas:
O objetivo do Projeto Metá:Fora é entender e desenvolver conhecimentos adequados a uma nova relação com a cultura interconectada a partir de comunidades locais, visando fomentar a inclusão digital e o uso efetivo de ferramentas de publicação pessoal e construção coletiva de conhecimento.
(http://mutirao.metareciclagem.org/livro/Chocadeira-colaborativa)
O fim e os começos
Depois de mais de um ano de atuação acelerada em dezenas de projetos, o Metá:Fora se esgotou. Uma das coisas que precipitou seu fim (descrito detalhadamente no texto de Miguel Caetano nesta publicação) foi a tentativa de corporificar a MetaReciclagem em uma ONG. Encerramos a TAZ projeto Metá:Fora, que deixou seus rastros na forma de um monte de conversações pela web, alguns projetos e muitos contatos. Tudo o que veio depois foi conseqüência dessa primeira fase.