Uma vez encerrada a etapa inicial de consumo e uso de eletrônicos, ou seja, depois que a pessoa ou organização que comprou determinado equipamento já o usou ao máximo, ainda existe uma série de alternativas antes do efetivo descarte para a reciclagem. Esta parte do texto tem uma grande influência de idéias gradualmente elaboradas dentro do âmbito da Rede MetaReciclagem, mas até hoje não implementadas por diversos motivos. Nesse sentido, é muito mais uma hipótese a ser testada do que uma recomendação prática, e conta com a imprecisão de ser uma história contada por um de seus participantes. Como nas outras partes, aguardo críticas e sugestões. O foco principal aqui é estender a vida útil principalmente de computadores junto com projetos sociais, mas é possível pensar em adaptações dessas propostas para celulares e outros equipamentos.
A rede MetaReciclagem
A sociedade do excesso é também a sociedade do desperdício. A cada ano, entre os milhões de equipamentos eletrônicos que vão para o lixo, literalmente se joga fora a oportunidade de ajudar muita gente. Essa foi uma das influências para a criação da rede MetaReciclagem, e é também a motivação por trás de diversos projetos cujo foco é a reutilização de eletrônicos.
A idéia da MetaReciclagem surgiu na rede, como um dos projetos do Projeto Metá:Fora, em 2002. Depois de debater por algum tempo a idéia de receber doações de computadores usados e remanufaturá-los usando software livre, passamos a contar com o apoio do Agente Cidadão, uma ONG de São Paulo que fazia a coleta, armazenamento e redistribuição de qualquer tipo de doação material (roupas, livros, móveis, e também eletrônicos) para associações comunitárias e outros projetos. Em 2003, houve alguma repercussão da MetaReciclagem na imprensa, e passamos a receber um fluxo quase constante de doações. O Agente Cidadão nos cedeu um espaço - que chamávamos de Galpão - e conseguimos arregimentar um grupo de voluntários que freqüentava o espaço a cada semana. A partir de lá, começamos a construir parcerias com diferentes projetos, e logo percebemos que o que estávamos propondo ia muito além do aspecto operacional da coisa - logística, tratamento e redistribuição. No processo de mobilizar pessoas para colaborar, fazer a triagem e a remanufatura dos computadores e por fim direcioná-los acabamos aprendendo muito sobre os diversos processos envolvidos.
Uma questão fundamental que a MetaReciclagem já tocava naquela época era a questão do aprendizado relacionado à apropriação crítica das tecnologias, incentivando a curiosidade sobre o funcionamento interno das máquinas, quebrando a verdadeiro medo que as pessoas têm de manipular a tecnologia - tomá-la nas mãos, entender as elementaridades dela e propor novas combinações. Uma metáfora bastante significativa nesse sentido é o monolito negro do filme 2001 - Uma odisséia no espaço. Enquanto as pessoas tratarem a tecnologia como uma coisa fechada, cujo funcionamento é misterioso - quase mágico, no mau sentido -, estamos longe de conseguir criar um processo efetivo de apropriação dela.
Com o tempo, tivemos a oportunidade de experimentar diferentes arranjos relacionados ao ciclo do reaproveitamento de eletrônicos: montamos outro laboratório de MetaReciclagem no Parque Escola de Santo André, cuja proposta é ser um espaço em que tudo é reciclado. Nessa época, se aproximou da MetaReciclagem o artista plástico Glauco Paiva, que propôs um nível ainda maior de apropriação com a pintura dos gabinetes dos computadores, e com a montagem de instalações em que ora as peças de um computador eram usadas para outros fins, ora o computador era montado com peças que não faziam parte do universo da informática: cadeiras, latões de lixo e outros. Foi também em Santo André que o Dalton conseguiu fazer pela primeira vez um processo em que integrantes de diferentes cooperativas da cidade vinham ao Parque, aprendiam a montar e usar computadores com GNU/Linux, e ao fim do processo levavam os computadores que haviam montado.
O projeto de MetaReciclagem em Santo André foi encerrado por motivos alheios à nossa vontade, justamente numa fase em que estávamos planejando um ciclo em que cooperativas de catadores de lixo separariam os eletrônicos que encontrassem para direcionar para uma cooperativa de montagem de computadores, que trataria de direcionar as máquinas prontas para diferentes projetos sociais. As peças que não pudessem ser mais recuperadas seriam vendidas para uma das (poucas) empresas que fazem o processo ambientalmente adequado de reciclagem. Tivemos reuniões com o pessoal do Agente Cidadão, que tomaria conta da logística, e de diferentes ONGs e empresas. Podia ter dado certo naquele contexto, mas não estávamos com uma estrutura sustentável de desenvolvimento e ficamos reféns do cenário político local.
Enquanto isso, a MetaReciclagem assumia duas características que a transformariam profundamente. Assumia uma natureza sócio-cultural junto com a questão técnica - o que nos unia não era a mera questão de remanufaturar computadores, mas as diversas possibilidades criativas que acompanhavam o processo de desconstruir e reconstruir as máquinas, usando o software livre como desafio e aprendizado. E desenvolvia-se cada vez mais como rede distribuída e livremente replicável - projetos auto-gestionados e integrados à rede eram criados no Rio de Janeiro, em Arraial d'Ajuda, em Manaus e outras partes. Desenvolvemos uma nomenclatura para definir três níveis de interação: os esporos, laboratórios de referência; as conecTAZes, qualquer mobilização de pessoas para utilizar tecnologia "metareciclada"; e a infralógica, uma camada de ambientes online que serviam para integrar as pessoas e projetos. De certa forma, passava também a tratar da naturalização do conhecimento técnico não como algo alheio ao cotidiano, mas buscando o diálogo com características tipicamente brasileiras como a criatividade e sociabilidade cotidianas, presentes em fenômenos populares como as gambiarras e os mutirões.
Na seqüência disso tudo, alguns de nós começamos a auxiliar na elaboração e implementação de políticas públicas relacionadas à inclusão digital, o que gerou resultados bastante interessantes mas teve como efeito colateral baixar a prioridade do desenvolvimento autônomo da MetaReciclagem. Ao longo dessa época, a integração entre os diferentes projetos foi muitas vezes deixada de lado, face a demandas muito mais urgentes do dia a dia. De qualquer forma, hoje o universo da MetaReciclagem envolve algumas centenas (ou milhares?) de pessoas espalhadas por todo o Brasil. E uma coisa permanece: toda semana chegam mensagens de pessoas que têm equipamentos parados e não sabem o que fazer com eles. Um dos caminhos possíveis para a MetaReciclagem agora é retomar o projeto do ciclo completo que tentamos implementar em Santo André, adicionado de uma estratégia de logística distribuída. Abaixo, eu tento esboçar algumas anotações no sentido de construir uma proposta para fazer frente a essa demanda.
Logística Distribuída
Mesmo com a relativamente pequena quantidade de ações voltadas à sensibilização e conscientização acerca dos benefícios de encaminhar eletrônicos para doação, muitas pessoas já procuram orientação sobre como fazê-lo. Na outra ponta, existem diversas organizações e projetos que poderiam se beneficiar desse tipo de recurso. O que falta é exatamente o meio do caminho: um intermediário que retire as doações, organize-as e entregue para quem precisa. Essa era uma das maiores preocupações do saudoso Adilson Tavares, do Agente Cidadão. Por algum tempo, chegamos a pensar que a MetaReciclagem poderia liderar esse tipo de ação, mas levando em conta a escala em potencial desse tipo de ação, é possível também imaginar um sistema de agenciamento online, independente e geo-referenciado, que permita o cadastro de doadores, intermediários e destinações possíveis. Seria necessário acrescentar um mecanismo de reputação e negociação, de maneira que pessoas e organizações que fizeram doações pudessem verificar o que foi feito com elas, e com isso servir de apoio para o agenciamento de novas doações. Poderia funcionar como uma espécie de feira online, nas bases de sistemas de leilões como o mercado livre, mas sem o aspecto financeiro. Outra idéia presente no Mercado Livre é que a logística é negociada a cada transação: o sistema pode oferecer diversas possibilidades, desde os correios até o eventual agenciamento de pessoas dispostas a dar "uma carona" para os equipamentos.
Idealmente, esse sistema adotaria microformatos, para permitir a integração com diferentes portais e sistemas, e seria desenvolvido com software livre. O fundamental em um sistema desses é ele ser aberto à utilização dos diferentes atores: desde os Centros de Recondicionamento de Computadores do Governo Federal até redes como a MetaReciclagem ou qualquer organização interessada em doar ou receber eletrônicos. O apoio de fabricantes de eletrônicos interessados em ações efetivas de responsabilidade social e ambiental, e talvez ainda mais importante, de empresas de transporte e logística, poderia ser também interessante.
A tetrapak desenvolveu um site chamado Rota de Reciclagem que explora alguns usos interessantes de ferramentas online nesse sentido. O portal voluntariado também usa o CEP para encontrar organizações. E projetos experimentais como o Excambo e o Yscambau se propõem a criar sistemas de agenciamento de trocas:
- http://www.rotadereciclagem.com.br/
- http://www.voluntariado.org.br/
- http://excambo.ourproject.org/
- http://estilingue.sarava.org/moin/Yscambau
Empreendimentos sociais
Além do agenciamento direto de transações entre doadores e destinatários de doações, é possível imaginar também projetos que funcionam como entrepostos (não-comerciais): organizam a logística, recebem doações, realizam as diferentes etapas da triagem e da montagem, e agenciam a demanda de suas respectivas regiões e encaminham o descarte final para a reciclagem efetiva. Além do aspecto operacional, esses espaços também podem funcionar como centros de aprendizado técnico, realizando cursos e oficinas. Adotando um posicionamento de infra-estrutura livre, também é possível pensar em interações com artistas locais ou oferecer os computadores como apoio a projetos locais. Existem grandes empresas que consideram a intermediação de eletrônicus usados uma oportunidade de mercado, mas eu quero acreditar que esse espaço pode ser compartilhado com cooperativas autogeridas e pequenos empreendimentos, com reinvestimento do lucro em projetos sociais. Elas trabalhariam em rede com o sistema de logística distribuída, e poderiam ajudar a dar sustentabilidade e retorno sócio-econômico para os pequenos atores do universo da reciclagem de eletrônicos.
- O projeto de MetaReciclagem em Santo André apoiou a criação de um laboratório na Sacadura Cabral e da Informeta, uma pequena empresa que foi citada em matéria da revista A Rede sobre cooperativas: http://www.arede.inf.br
Triagem e Remanufatura
Existem diferentes configurações possíveis para a triagem de eletrônicos usados, dependendo dos objetivos específicos. Seguindo a lógica dos empreendimentos sociais, é possível pensar em uma etapa inicial de triagem para testar os computadores que ainda estão funcionando (aqueles que é só ligar e inicializam). Os que não passarem nessa fase são então desmontados, e seus componentes separados e testados um a um. Aqueles que não funcionam e não podem ser utilizados de maneira alternativa são então encaminhados - também pelo sistema de logística distribuída - à reciclagem efetiva, sobre a qual eu pretendo falar no próximo texto.
Com um certo volume de doações, qualquer projeto pode criar um banco local de peças para a montagem ou a recuperação de computadores. Também é possível realimentar o sistema de logística distribuída com um inventário de componentes que podem, assim como as doações, ser direcionados para os diferentes projetos que deles necessitem. Aqui mais uma vez se pode pensar no agenciamento através de reputação dentro do sistema, ou também pensar em um mercado de escambo de componentes: um projeto pode listar os componentes que não está usando e em troca pedir as partes de que necessite. Eventualmente, as trocas podem envolver não somente componentes, mas ofertas imateriais como horas de trabalho: design gráfico, fotografias, ilustrações, música, etc. Outra etapa interessante do processo de triagem e remanufatura, quando associado a projetos sociais, é a customização dos computadores reciclados, com pintura dos gabinetes, para tirar o aspecto de equipamento velho e aproximar a tecnologia das pessoas.
E como fazer?
Em última instância, todo este texto é um exercício de criação. Tenho certeza de que deixei de lado um monte de outros aspectos do descarte e do reuso, mas aproveitei para tentar estruturar uma proposta tomando por base um pouco da experiência da MetaReciclagem nesses últimos seis anos. Estamos (o lixoeletronico.org) conversando sobre como tirar essas possibilidades do papel, e de alguma forma criar alternativas ao ciclo compulsivo do consumo e descarte. Aceitamos idéias de como ir adiante com isso tudo.
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