Palavras e ideias de Simondon

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Thiago Novaes traduziu e compartilhou um fragmento do filósofo Gilbert Simondon sobre cultura técnica que vem de encontro com o seminário que acontecerá entre os dias 02 a 04 de abril no Anfiteatro I - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. O trabalho de Simondon oferece recursos poderosos e ainda muito pouco conhecidos para se pensar as relações sociais entre humanos e também entre humanos e não-humanos de perspectivas variadas, sejam elas sociológicas, antropológicas, políticas, filosóficas, epistemológicas ou estéticas:

Rumo a uma "cultura técnica"

A constatação com a qual se abre Du mode d’existence des objets techniques é a de uma crise, de um conflito entre a cultura e a técnica, um conflito que nasce do desconhecimento da técnica pela cultura, que considera essa última como uma "realidade estranha" (MEOT, p. 9) e a rejeita como tal. "Cultura técnica" nomeia então o pensamento que ficará encarregado de resolver este conflito, e desde o início, se diz que apenas um tipo de pensamento filosófico pode assumir a tarefa de tornar a cultura e a técnica compatíveis.
Mais do que um "pensador da ténica", Simondon aparece desde as primeiras linhas como um pensador da resolução de uma crise de humanidade em relação ao mundo técnico. A razão de uma tal crise parece estar na oposição secular entre, por um lado, o mundo da cultura como um mundo do sentido e, de outro lado, o mundo da técnica considerada apenas sob o ângulo da utilidade. É por isso que, atacando os pilares do edifício da discórdia, a primeira frase de Du mode d’existence des objets techniques, que soa como um manifesto, declara que os objetos técnicos são depositários de um sentido .
Como filosofia vai se prender a isso para libertar seu sentido? Em todo caso, ela é sempre em G. Simondon uma filosofia da individuação, ou uma ontogenia. Mas o que pode significar fazer a gênese da técnica? Aqui e acolá, não nos é falado da técnica, isto é, de um conceito geral, mas dos objetos técnicos, uma multidão de seres que resultam todos de operações técnicas. Ele vai então tratar de provocar uma "tomada de consciência dos modos de existência objetos técnicos" (MEOT, p. 9), isto é, não se interessando apenas por sua utilização, ou na intenção utilizadora que podemos projetar sobre eles, mas em sua gênese. Esta aí a tarefa de uma tecnologia, que busca conhecer os esquemas de funcionamento dos objetos técnicos como esquemas que não são fixos, mas necessariamente engajados em uma evolução temporal. De fato, sendo inventado (o que o distingue um ser vivente), e precisamente para um vivente capaz de se auto-condicionar, o ser técnico é dotado de relativa autonomia. É por isso, ainda que a intenção fabricadora depositada em um objecto técnico não deva ser confundida com a intenção utilizadora que lhe é essencialmente exterior, não podemos explicar o modo de ser de um objeto técnico pela intenção fabricadora que um dia se deu. Para compreender o modo de existência dos objetos técnicos, é preciso se descolar da intencionalidade humana e entrar na concretude dos sistemas técnicos, na medida em que todo indivíduo técnico é um sistema de elementos organizados para trabalhar em conjunto, e se caracteriza por sua tendência à concretização. Em Simondon, para retomar (em sentido contrário) a expressão de Heidegger, nós diríamos que a essência da técnica é ainda técnica. Ela não se encontra em uma racionalidade fundante, em um regime de instrumentalidade ao qual ela daria simplesmente corpo. Mas ela consiste nesta tendência à solidariedade cada vez  mais completa dos elementos agenciados em sistemas que funcionam, em uma tendência autônoma em relação ao ato da invenção: a invenção dá nascimento a uma "essência técnica" (MEOT, p. 43), isto é, a um ser que, desde que existe, tende a se simplificar, [e isso] fazendo engendrar um phylum genético, uma linha de indivíduos técnicos cada vez mais concretos. Um objeto técnico não pode acessar de um só golpe a concretude, e o ancestral de uma linhagem tecnológica é necessariamente mais abstrato que os indivíduos técnicos que o sucederam dentro da mesma linhagem. Portanto, o objeto técnico enquanto sistema não é redutível ao sistema científico das interações causais que se aplicam a ele, e sempre "subsiste uma certa diferença entre o esquema técnico do objeto (que comporta  a representação de um propósito humano [propósito que tem necessidade, para se materializar, de uma série de indivíduos da mesma linhagem]) e o quadro científico dos fenômenos nos quais ele se assenta (comportando apenas os esquemas de causalidade eficiente, mútua ou concorrente" (MEOT, p. 36). Em função dessa tendência do objeto técnico à concretização, "mesmo se as ciências não avançam durante algum tempo, o progresso do objeto técnico rumo à especificidade poderia continuar a se desempenhar" (MEOT, p. 27).
Desde o fim de sua primeira parte, Du mode d’existence des objets techniques (que comporta três) chega a uma reformulação essencial da natureza da crise da humanidade em relação à técnica, constatada desde o começo. Interessando-se na gênese dos indivíduos técnicos individuais, esta parte da obra levou a pôr em evidência que, desde a invenção da máquina, a individualidade técnica não reside mais no homem, que havia assumido até ali a função de portador de ferramentas. Invertendo o ponto de vista habitual que quer que a máquina venha a "tomar o lugar do homem", Simondon explica que seria preciso dizer com mais rigor que "o homem desempenhou de tal forma o papel de indivíduo técnico que a máquina se tornou indivíduo técnico parecendo ainda ser um homem e para ocupar o lugar do homem, enquanto é o homem, ao contrário, quem substituía provisoriamente a máquina antes que os verdadeiros indivíduos tenham podido se construir "(MEOT, p. 81). A recente crise que vê na técnica, e mais especificamente, na mecanização do processo de trabalho a fonte de um drama, seria então devido a um desconhecimento do deslocamento da função dos portadores de ferramentas do homem para com a máquina, e, concomitantemente, do potencial libertador que contém um tal deslocamento. Porque, por menos que paremos de aplicar à realidade técnica um esquema que lhe é totalmente estranho e que visa distinguir hierarquicamente a terefa de levar aos elementos da máquina (as funções auxiliares) e a tarefa de organizar os conjuntos de máquinas, uma tal mutação se revela portadora de um sentido positivo.
É isto que Simondon explicita na segunda parte do livro, onde revela o requisito da igualdade que contém a técnica na época das máquinas. Igualdade entre os homens pertencentes a um mesmo coeltivo técnico (voltaremos a isso), mas primeiro, e mais fundamentalmente, igualdade entre homens e máquinas, que consiste para os homens em "existir em um mesmo nível que elas" (MEOT, p . 125). Existir no mesmo nível que as máquinas, eis uma possível definição de a "vida técnica" que Simondon atribui ao homem enquanto ele é capaz de "assumir a relação entre o vivente que ele é e a máquina que ele fabrica" (MEOT, p. 125). Porque as máquinas conhecem apenas os dados e esquemas de causalidade, é ao homem que cabe estabelecer as correlações entre as máquinas. Apesar de aparentemente óbvio (quem sonharia que as máquinas fossem capazes de ligar espontaneamente?), esta ideia encontra em sua versão simondoniana uma nova profundidade. Porque é enquanto vivente que o homem é declarado responsável pelos seres técnicos, ou seja, enquanto ser inscrito no tempo e, assim, tendo a capacidade de retroagir sobre suas condições de vida, modificando as formas dos problemas a resolver. É de fato, devemos lembrar, em termos temporais que Simondon explica a capacidade de inventar, o que caracteriza a seus olhos o vivente como teatro de individuação: a invenção, como um ato de um vivente "que leva consigo seu meio associado", é descrita como "uma influência do futuro sobre o presente, do virtual sobre o atual" (MEOT, p. 58). Assim, podemos dizer que o homem desempenha entre as máquinas o papel de transdutor; ele "assegura a função do presente, mantendo a correlação porque sua vida é feita do ritmo das máquinas que o cercam e conecta umas às outras" (MEOT, p. 126). Esta preocupação com a correlação dos seres técnicos uns relação aos outros é o que deve conduzir o homem a se descolar da simples consideração da utilidade dos seres técnicos para fazer dele uma "testemunha das máquinas [.. .] responsável por sua relação" (MEOT, p. 145). Mas se a tecnologia é bem entendida, quer dizer, a atenção aos objetos técnicos é considerada do ponto de vista de seu modo de ser, pode contribuir a revelar a possibilidade de um futuro harmonioso do homem e da técnica, isto não acontece sem um risco que lhe é coextensivo: o risco, que Simondon vê atualizado em Norbert Wiener, é aquele da redução da sociedade a uma máquina de um tipo particular. Assim se perfaz o perigo do tecnicismo, que reduz qualquer crise - seja ela social - a um problema de regulação e projeta como único ideal a homeostase, o equilíbrio estável de forças presentes.
Ora, para evitar o reducionismo tecnológico, Simondon não vê outro meio senão estudar, além de objetos técnicos, "a tecnicidade desses objetos enquanto modo de relação do homem com o mundo" que deve ser conhecida "em sua relação com os outros modos de ser no mundo do homem" (MEOT, p. 152; grifo nosso). A isto se encontra consagrada toda a parte final do livro, sem a qual não saberíamos compreender o que Simondon entende verdadeiramente por "cultura técnica", e onde está amarrado o paradoxo de um pensamento normativo do futuro.

COMBES, Muriel. "Simondon Individu et collectivité - Pour une philosophie du transindividuel". pp.44-46. Tradução Thiago Novaes.